Vera Barbosa

A maioria das coisas importantes que aprendo vêm de dentro, e não de fora de mim.

Textos

Confissões de um livro

Não sei se alguém acreditará na história que vou contar, pois pode parecer inverossímil e até impossível, mas é a verdade. Triste, mas a pura verdade.
Sou um livro. Nasci, como tantos outros, da vontade de um ser humano transmitir seus conhecimentos, seus sentimentos e sua visão de mundo a outras pessoas. Os livros são muito difíceis de serem gerados, muitos abortam logo ao serem concebidos, pois o autor se sente despreparado para a tarefa de concluí-lo. Dos que vingam, alimentados incansavelmente pelas ideias do escritor, alguns se sobressaem, caem no gosto popular, são delicadamente manuseados, ganham ricas encadernações e são traduzidos para outros idiomas. Outros têm um destino mais modesto como, por exemplo, um livro de poemas, que pode passar anos habitando um mesmo lugar numa prateleira, sem nunca ser descoberto por uma alma sensível. A finalidade dos livros é variada: informar, distrair, narrar grandes feitos ou pequenos acontecimentos, abrindo a mente do leitor para assuntos que antes lhe eram desconhecidos.
Minha vida até que foi boa, quanto a isso não me queixo. Sou um gordo volume de capa dura, especializado em assuntos de medicina. Fui muito folheado e pesquisado e sentia-me feliz por transmitir tantos conhecimentos ao meu dono. Nunca me importei de ser transportado de qualquer maneira, rabiscado, ter minhas folhas dobradas, à falta de um marcador de páginas, desde que estivesse sendo útil, prestando meus serviços aos estudantes ou curiosos em geral. Depois, por um longo tempo fui esquecido numa estante empoeirada. Ninguém mais procurou por mim, não contribuí com mais nenhuma pesquisa. Estava velho e desatualizado, mas sei que ainda teria utilidade numa biblioteca pública ou nas mãos de um estudante carente. Preferiria ter sido doado e até vendido para um sebo. Quem sabe alguém me compraria e eu voltaria a ser útil? Mas não, simplesmente caí no esquecimento.
E agora o pior: depois de tanto desprezo, meu dono se lembrou de mim, para decretar a minha morte da maneira mais vil e degradante que um livro jamais poderia esperar. Fui simplesmente colocado no lixo. Estou jogado na calçada, misturado a outros entulhos, pisado e amassado. Minha capa vermelha, já desbotada pelo tempo, ganhou manchas escuras; as folhas, misturadas ao lixo orgânico, colaram-se umas às outras, formando uma pasta gelatinosa e fétida. Não há mais esperança para mim... Logo virá o caminhão e serei jogado no triturador, como algo completamente inútil e sem valor...
Se ao menos tivesse sido colocado para reciclagem, alguém poderia me salvar à última hora e recolocar-me numa biblioteca... Mesmo se ninguém me salvasse e eu fosse reciclado, ainda teria alguma utilidade nobre ... Estou no fim... Sinto a chuva fria cair em enormes gotas, uma tempestade torrencial, formando uma grossa enxurrada que vem em minha direção...

Primavera Azul
Enviado por Primavera Azul em 09/08/2011


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