Vera Barbosa

A maioria das coisas importantes que aprendo vêm de dentro, e não de fora de mim.

Textos

Cata-treco


Folheando distraidamente o jornal, vi um anúncio de “cata-treco”, com um número de telefone desses 0800.
Curiosa que sou, logo quis saber de que se tratava. Liguei  perguntando o quê especificamente eles entendiam por treco, para saber se eu teria algum para “desovar”, e eles me disseram que qualquer coisa que estivesse sobrando ou sem uso em minha casa eles retirariam; era só colocar na calçada em dia e horários previamente combinados.
Foi aí que descobri que tenho trecos, trequinhos e até trecões, por exemplo, uma mesa de computador, que jazia no canto da saleta, um criado mudo que já não serve tão bem, uma fruteira, na cozinha, só ocupando espaço e praticamente sem uso, uma cantoneira de plástico, que já deveria ter sido colocada para reciclar, e outras bugigangas.
Enfim, eu que me digo minimalista, tenho muito treco para doar. Fico imaginando os consumistas, aqueles que não passam sem comprar alguma coisa, quando têm dinheiro, e quando não têm usam o cartão de crédito.
Penso que todos poderiam doar o seu treco, pois pode ter alguém precisando dele. Ou que chamem o Cata-treco só para desocupar espaço, para poderem colocar novos trecos.
Arrumando meus trecos para mandar embora, arranjei uma nova utilidade para um deles, que já estava separado; o que prova que não podemos ou não queremos mesmo viver sem eles em casa. E, às vezes, nem conseguimos esquecê-los, e nos perguntamos: por que fui dar aquele treco, que era tão útil? Mas, na ocasião, a opinião era bem outra.
Nesse sentido, trecos são como os relacionamentos: alguns terminam mesmo, rematam, vão com um: “adeus, foi bom enquanto durou”. Outros vão com um “até um dia?”. Ficam como que num arquivo morto de nosso coração, à espera de ser reativado, em “stand by”.
Há pessoas em nossa vida, que são como o ar que respiramos: sabemos que são imprescindíveis, nem imaginamos que podemos perdê-las, pensamos que sempre estarão ali, mas, quando se vão, nós morremos, ou quase: nossos pais, filhos, os amigos queridos, etc.; mas há também pessoas-treco: as que teimamos em prender, sem utilidade, e acreditamos ser importantes; as de quem nem percebemos a presença, embora trombemos com ela o dia todo; aquelas que só ocupam lugar em nossa vida, sem dar nada em troca, e nem deixam um vazio, quando se vão.
Os trecos são totalmente desnecessários e, às vezes, até atrapalham. Mesmo assim, insistimos em mantê-los. Será só culpa da sociedade de consumo? Ou seria uma característica da espécie humana? Nesse caso, ela poderia ser rebatizada de Homo Sapiens trecus.
Os trecos vão para lugares desconhecidos, se perdem. As pessoas queridas podem se mudar, mas sempre saberemos onde estão; mesmo que não conheçamos o lugar, e mesmo se a mudança for definitiva, estarão sempre dentro de nosso coração.
Primavera Azul
Enviado por Primavera Azul em 29/12/2011


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